quarta-feira, 19 de março de 2008

A doença no exílio

"Lorde" de João Gilberto Noll "A síndromde de Ulisses" de Santiago Gamboa

A situação de exílio tem sido um mote produtivo para a literatura ligada ao Ocidente. Se Ulisses é a personagem inauguradora/emblemática dessa tradição, é justamente a ele que o colombiano Santiago Gamboa se refere já no título de seu quinto romance, A síndrome de Ulisses (Planeta, 2006, tradução de Luis Reyes Gil), publicado na Colômbia em 2005. A citação ao épico grego é de segunda mão já que o título se refere, antes, a uma patologia que provoca distúrbios em imigrantes. No entanto, por se tratar de literatura, e, como veremos a seguir, literatura sobre o desterro de escritores e, de algum modo, das literaturas nacionais da periferia do ocidente, é impossível não enxergar uma tentativa de deslocar o termo da psiquiatria para a produção literária. Ainda na intercessão entre o universo das patologias e da literatura (que é, por si só, outro motivo literário profícuo) o romance Lorde, do gaúcho João Gilberto Noll (Francis, 2004), também toma como tema o desterro de um escritor, que adoece ante o estranhamento causado pelo que lhe é estrangeiro.

De evidente inspiração autobiográfica, as narrativas apresentam dois escritores de países periféricos, mais especificamente da América Latina, que se deslocam à Europa, em direção a suas duas grandes capitais culturais –Paris e Londres–, a fim de dar um (novo) sentido a sua escrita e que ante a dificuldade de integração com o meio, encontram o erotismo como fuga. Esse conjunto de pressupostos comuns de Lorde, de João Gilberto Noll e A síndrome de Ulisses, de Santiago Gamboa, resulta em narrativas que podem ser lidas relacionalmente, principalmente por se tratarem de relatos elaborados a partir de consciências particulares de sua diferença colonial, que se encaminham para sentidos totalmente distintos em que, como veremos, o primeiro produz uma peça literária de envolvente criatividade, o segundo apresenta a confirmação de uma série de clichês sobre a condição do imigrante.

Esteban, o protagonista e narrador de A síndrome de Ulisses, é um jovem colombiano aspirante a escritor que emigra para a França e, sediado em Paris, matricula-se em sua principal universidade num curso de pós-graduação sobre a literatura hispano-americana. Dotada de um magnetismo cultural sem par para os intelectuais latino-americanos, a mesma Paris que atrai o jovem também o decepciona, já que o curso não consegue envolvê-lo. A promessa acadêmica, assim, é a primeira de muitas a ser descumprida e, da universidade, o narrador não leva senão o amigo marroquino Salim. As aulas são burocráticas e o professor apresenta-se como uma figura antipática, representando uma instituição que parece repelir aqueles que não estão prontos a aderir a ela. Sintoma disso é o fato de Esteban permanecer quieto, à margem da aula, pelo domínio frágil que ainda tem da língua francesa. O descontentamento com a academia, longe de ser a forte demonstração de um espírito crítico é, na verdade, um clichê na narrativa da formação de um escritor (o primeiro de muitos de que o romance se servirá), que, original, dotado de um “gênio” único e, ousaria dizer, “rebelde”, repele a “burocracia” de um meio acadêmico opressivo.

É importante chamar a atenção, contudo, para o amigo Salim, um marroquino estudioso da literatura argentina que se afigura como um mistério para Esteban. O fato de que a obra de Leopoldo Marechal não precise estar inscrita nas fronteiras do país em que foi produzida e possa interessar a um marroquino, não como uma curiosidade antropológica ou histórica, mas como um texto literário num sentido mais amplo, é algo que Esteban inicialmente não consegue compreender. Contudo, num romance que volta sistematicamente seu olhar para as margens –da universidade, de Paris, do mundo ocidental e do sistema literário mundial– a ligação entre Salim e a literatura argentina chama a atenção para a possibilidade de uma aliança nas margens: nações com histórias e projetos tão distintos, que teriam pouco em comum além do fato de terem sido colônias de metrópoles européias, e mesmo assim, com projetos coloniais bastante diferentes, estabelecem o diálogo a partir da identificação entre o sujeito de uma nação e a literatura de outra. A discussão, no entanto, não avança no romance, voltando, superficialmente, nas conversas em que Esteban inquire Salim sobre o Marrocos e este sobre a Colômbia do narrador.

Outra promessa que não se cumpre na narrativa de A síndrome de Ulisses, é a própria cidade de Paris. Esteban somente transita em espaços que pouco guardam da imagem turística fixada sobre Paris e que, certamente, é a que ele levou da Colômbia. O personagem vive num cubículo, de onde, após desistir do curso na universidade, sai apenas para trabalhar no porão de um restaurante chinês. É no restaurante que Esteban conhece alguns personagens que ocuparão grande parte da narrativa: imigrantes ilegais africanos, asiáticos e do leste europeu, que o conduzem por uma Paris marginal.

As margens do espaço e de si
Se o emblemático Louvre é evitado pelo narrador de A síndrome de Ulisses, a National Gallery, de Londres é reiteradamente visitada pelo narrador de Lorde. Isso se deve principalmente ao fato de que os percursos dos narradores dos dois romances têm rumos diferentes. O conjunto de imagens mais utilizado por Gamboa para evidenciar a presença das margens no seu romance vem da periferia da cidade em que o protagonista vive. Sem negar a força que possam ter tais imagens, não há como não reconhecer a obviedade do recurso. Já o narrador de Lorde, não circula exclusivamente pelas margens da cidade como modo de evidenciar sua condição de fora-de-lugar, mas ele explora justamente a sua inadequação em espaços que fazem parte de uma paisagem internacionalizada de uma capital turística como Londres. Por isso, a National Gallery, com seus quadros valiosos visitados diariamente por milhares de turistas, é o espaço ideal para evidenciar a condição de estranho/estrangeiro do narrador. Assim, se a inadequação ao espaço é trazida no romance de Gamboa pelo que é externo ao protagonista –os amigos migrantes, a hostilidade da cidade–, em Noll ela emerge da subjetividade do narrador. É interessante notar ainda que o narrador de Lorde também é inadequado nas margens, como na passagem em que ele se junta aos moradores de rua e participa da morte de um deles.

Encontro e fuga
Desse modo, em Lorde, um consagrado escritor brasileiro aceita o convite de uma universidade britânica para ser escritor e palestrante residente em Londres durante uma temporada. No entanto, sequer é possível falar em promessas não cumpridas, como no caso da narrativa de Gamboa. O personagem de Noll (vale lembrar que é quase sempre o mesmo em diferentes romances) não está em busca de promessas. O que ele empreende é a execução de uma fuga sem plano. Ele foge inicialmente do Brasil e de uma certa monotonia que a consagração, que ele renega, lhe trouxe. Uma vez fora de seu país, segue em fuga: de seu anfitrião na Inglaterra, posteriormente de Londres e até de si mesmo, quando, no desfecho do romance, seu corpo se metamorfoseia no do outro.

No romance de Gamboa assim, uma narrativa tradicional em que o processo de formação de um escritor latino-americano é descrito segundo passos mais ou menos pré-determinados: a busca por um grande centro cultural, as decepções com o que esse centro pode oferecer, a descoberta de si via sexualidade, a descoberta do outro por meio do contato com culturas diferentes, o pedido de bênção aos escritores que já se consagraram com percurso semelhante e, por fim, uma sensação de experiência acumulada que possibilita ao leitor enxergar as potencialidades do artista que ele viu surgir diante de seus olhos.

Nesse sentido, a experiência, enquanto acumulação não importa ao protagonista do romance de Noll. Sua chegada a um grande centro se dá por meio de uma série de eventos que são convenientes para que ele execute um projeto de fuga, não de busca, como é o caso do esperançoso Esteban. Não que o personagem de Noll seja um cínico ou um pessimista, já que, muito pelo contrário, ele está em busca de um encontro com o outro, de fazer mover a dinâmica da afetividade entre os homens. Assim, ainda que não busque acumulação de experiência no pólo cultural a que acorre, o narrador de Lorde, se decepciona com o aprisionamento que lhe é imposto pela sua própria obra, que surge no apartamento, às vésperas da fuga completamente empoeirada, mas que é ao mesmo tempo a única memória, ainda que estranha, que tem de si na terra estrangeira. Vale então chamar a atenção para a crítica que ambos romances trazem sobre a potência dos grandes centros culturais do mundo ocidental: Londres e Paris, enquanto metrópoles da república mundial das letras, isto é, cidades-instituição do campo literário, são incapazes de, por meio de seus instrumentos tradicionais de formação cultura –principalmente a universidade no caso do dois romances–, proporcionarem uma experiência criativa para os escritores. É justamente pela consciência da diferença e do sentimento de estranhamento ante esse espaço que os dois artistas se sentem estimulados a seguir. Há, desse modo, uma força repulsiva de mão dupla no encontro entre o intelectual da periferia e as instituições culturais das metrópoles.

Se Esteban se empenha para conseguir encontrar-se com os grandes escritores latino-americanos residentes em Paris, com os quais faz longas entrevistas sobre o lugar da literatura de seus países de origem, o narrador de Lorde não se interessa absolutamente pela produção intelectual daqueles que o recebem em Londres. O seu encontro com o professor Mark, por exemplo, é narrado a partir de uma perspectiva mais corpórea que intelectual. Sua vontade de conhecer o outro se traduz, como é praxe nas personagens de Noll, no desejo erótico. Assim, ele e Mark não se detêm em conversas sobre a literatura, seus países, etc. Sua relação é construída com base num afeto que o narrador logo vê como impossível e, após um acesso de choro, foge da presença do inglês.

Há também em Noll um desejo de uma descoberta de si a partir da sexualidade, como a cena descrita acima insinua, mas que é também descoberta do outro e que não se presta, como em Gamboa, a uma noção de amadurecimento. As imagens que a narrativa de Lorde obtém das cenas de sexo são bastante significativas do sentido que o narrador dá a sua trajetória. É importante se fixar na cena final em que após a mistura dos semens do narrador e de George, seu último parceiro, ocorre a metamorfose dele no outro, num ato que de algum modo exprime o sentido da personagem na narrativa, isto é, fugir de si sem deixar de ser-se e penetrar na alteridade sem perder-se completamente de si. Não é, definitivamente com a geografia dos espaços que ele consuma seu ato, mas com a geografia dos corpos e de uma subjetividade delirante que marca todo o romance.

O cartesianismo do processo evolutivo de amadurecimento do protagonista de A síndrome de Ulisses, é recusado pela narrativa de Lorde. Não há experiência acumulada no narrador de Noll, mas um sempre-presente que, se guarda alguma memória, a tem como um incômodo para as metamorfoses e fugas que ele empreende. A Colômbia de Esteban também é um peso com o qual ele ainda tem dificuldades de lidar, ao passo que o Brasil de Noll é uma referência distante, propositalmente citada como algo mais facilmente esquecível que os livros que escreveu ou mesmo as personagens do próprio romance que desaparecem sucessivamente do horizonte do narrador e, claro, da narrativa.

Doentes no/do exílio
A “síndrome de Ulisses”, referida no título, acomete uma personagem próxima do narrador. A história de Jung, um velho chinês com quem o jovem trabalhou num restaurante, é contada com algum detalhamento na narrativa, sem deixar de recorrer a certo exotismo, por um lado, e a um comentário político por outro. É uma história de amor incompleta, na qual Jung se viu obrigado a abandonar a China e a amante. Eternamente inconformado com a sua situação, Jung é um homem deprimido, mas bondoso, que apadrinha o jovem e imaturo Esteban, ensinando-lhe lições de pai e de mestre chinês. Sua depressão, em decorrência da síndrome, o leva ao suicídio quando Ming, sua esposa, finalmente chega a Paris. O desenho trágico de sua história é uma das linhas narrativas em que Gamboa mais investiu no romance. Ainda que guarde alguma força, ela se perde nos clichês e num certo apelo fácil à emoção com o conjunto de desencontros trágicos que enceta.

Os recursos utilizados para introduzir alguma emotividade em A síndrome de Ulisses podem ser contrastados com aqueles que Noll utiliza em seu texto. Há efetivamente no narrador de Lorde uma vontade e uma recusa de afeto que não são trágicas por uma trama que o coloque diante de situações-limite inescapáveis, mas pelo sentimento de inadequação, que atravessa o espaço geográfico, o espaço social, e o espaço da subjetividade desse personagem. A patologia não está como em A síndrome de Ulisses no outro, mas no próprio narrador-protagonista do romance. É esse, talvez, o ponto que faz com que os romances alcancem resultados tão diferentes: a sanidade do narrador do romance de Gamboa é incompatível com a insanidade que o próprio título do romance anuncia, ao passo que o romance de Noll mergulha sua personagem naquilo que o exílio pode ter de patológico, dotando-a, dessa maneira, de mais humanidade.

Anderson da Mata.
Doutorando em Literatura pela Universidade de Brasília.
As discussões sobre os livros comentados foram realizadas o 01.06.2007 (A síndrome de Ulisses) e o 15.06.2007 (Lorde).