quarta-feira, 23 de abril de 2008

"O enteado": a experiência poética de Saer

O enteado

O romance O Enteado (1983), do escritor argentino Juan José Saer, traduzido pelas precisas mãos de José Feres Sabino e publicado pela editora Iluminuras, não é apenas mais um entre tantos textos que ficcionalizam e parodiam a história da conquista espanhola da América. Embora não seja desconhecida dos brasileiros, a obra de Saer ainda não ocupa o espaço que merece em nosso país. Mas com este texto, podemos dizer que sua desconcertante narrativa, tão diferenciada das demais correntes da literatura argentina, começa realmente a ganhar corpo entre nós.

Em O Enteado, temas e obstinações centrais da literatura de Saer, como a ênfase na experiência poética, o exercício de reflexão sobre a escrita, e o questionamento do estatuto da memória e da percepção, emergem para o leitor através da escrita autobiográfica de uma personagem que, aparentemente, participou de um dos episódios mais significativos da história da América hispânica: o ingresso das naus de Juan Díaz de Solís no estuário do Rio da Prata —algo equivalente à chegada das naves portuguesas de Cabral às costas brasileiras.


O texto, ambientado na Espanha e na América do século XVI, consiste nas recordações de um ex-grumete da armada espanhola que, depois de ter sido capturado por indígenas de uma tribo americana chamada Colastiné, e ter de passar dez anos entre eles, decide, décadas depois, rememorar sobre sua vida, detendo-se sobretudo nos anos em que testemunhava seguidamente a singular cerimônia de canibalismo dessa tribo, crivada de orgias e dominada por pulsões de morte e destruição.


Assim, diante de uma narrativa que nos faz lembrar em alguns aspectos os relatos picarescos, o leitor, enquanto conhece as andanças dessa personagem órfã por terras americanas e espanholas, assiste a uma intensa problematização da percepção da realidade e das possibilidades de representá-la. Da mesma forma, as lembranças da personagem se encontram atravessadas continuamente por uma inflexão dubitativa e hipotética, que aproximam o relato em muitos momentos de uma negatividade quase absoluta. Não é por acaso que o verso de Carlos Drummond de Andrade “vejo tudo impossível e nítido no espaço” é usado em muitas oportunidades por Saer para definir sua práxis literária.


Por meio dessa personagem que procura, a partir do espaço de extrema solidão de seu quarto, reconstruir mediante sua vacilante memória a própria história individual e as vozes perdidas desses indígenas americanos, observamos uma narrativa que põe em dúvida e reflete sobre a alteridade e a ambivalência das fontes históricas e etnográficas. Nesse espaço e tempo em que transbordam preocupações existenciais, o romance discute ainda a
complexa e arbitrária relação entre linguagem e experiência de mundo. Nota-se um intenso trabalho sobre o plano narrativo, numa tentativa de levar para o espaço ficcional a intensidade da percepção poética de mundo através da reelaboração das estruturas e dos ritmos da prosa.


A tentativa da personagem, já quase ao final do livro, de interpretar o significado da refeição canibal dos indígenas e a posterior festa orgiástica praticada por eles, revela-se um gesto que nos conduz a instância sempre problemática dos seres e objetos, dando ao texto um valor filosófico incontornável. Além disso, o banquete antropofágico, que fazia os colastinés provar anualmente uma experiência de estranhamento radical com o mundo exterior e de um distanciamento extremo entre indivíduo e mundo, nos fazem lembrar a angústia descentralizante de A Naúsea de Jean Paul Sartre e a introspecção metafísica de Paixão segundo G.H. de Clarice Lispector.

Juan José Saer nasceu em Serodino, província de Santa Fé, Argentina, em 28 de junho de 1937, e transferiu-se para Paris em 1968, com 31 anos, por diferentes razões. Seus pais imigraram da Síria. Dando continuidade a uma linha da literatura argentina que questiona e desconfia do estatuto da literatura, Saer em O Entenado desdobra e aprofunda estas inquietações no marco de problemas como a função poética da narrativa, o sentido do real e a dimensão cognoscitiva da literatura. Em termos gerais, Saer renova as formas e estruturas narrativas tradicionais, ao examinar criticamente a literatura latino-americana em tempos de boom, censurando seu entusiasmo totalizante, e ao ajustar os elementos expressivos de sua narrativa no interior da tradição literária argentina. Compartindo com outros escritores do interior argentino a preocupação de superar as limitações de um regionalismo, Saer, com uma consciência crítica e artística muito aguda e sem abdicar de seu referente espacial, a província de Santa Fé, emprega forças em penetrar e interrogar a singularidade cultural, histórica e política de seu tempo, com o fim de transcender a uma esfera mais ampla, de alcançar uma imagem do indivíduo frente às próprias circunstancias mais acabada e comprometida com a experiência vital e espiritual do homem.


Paulo Thomaz.
Doutorando em Literatura Hispano-Americana pela USP.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Distantes de tudo

Até o dia em que o cão morreu

Na orelha da primeira edição de Até o Dia em que o Cão Morreu, João Gilberto Noll diz que Daniel Galera nos mostra "seres quase que em estado de natureza, em diáspora com o mundo administrado pela burocracia das horas, dos empregos fixos, seres que se sentem mais à vontade com os bichos -franciscanas criaturas sem qualquer resquício do sagrado. A morte ronda. Nada parece fazer muita diferença. Eis um livro, eu aposto, que será lido pelos que emergem na idade adulta com toda a sofreguidão".

O renomado romancista gaúcho está certo nesta última colocação, já que o livro de Galera trata de um tema que, contraditoriamente, é bastante contundente: a indiferença. É um assunto difícil, não só por ter sido já explorado já em clássicos como O Estrangeiro, de Albert Camus, ou em Estorvo, de Chico Buarque, ou mesmo em praticamente toda a obra do próprio Noll, mas também por suscitar as mais variadas reações no leitor. Este pode se identificar com a postura do protagonista (em geral, e este livro não é exceção, quando o tema é a indiferença esta aparece no protagonista) e acabar adorando o livro, ou rejeitando a obra de forma absoluta por conta da postura de um dos personagens.

Até o Dia em que o Cão Morreu é um romance incisivo no cenário que traça: se na maioria dos livros sobre indiferença o leitor é apresentado a um mundo desinteressante, alienante, cheio de pessoas mesquinhas, vazias ou até mesmo (por que não dizer?) burras, temos nesse caso um protagonista que rejeita ativamente a pulsante vida que o cerca. Ele tem uma namorada (pode ser que o termo não seja adequado) cheia de sonhos e frustrações pessoais, e acaba conhecendo, no decorrer do enredo (ou não-enredo, já que é constituído de pouquissimos eventos), figuras muito interessantes (um porteiro com talento para a pintura abstrata, um motoboy divertido que cuida alegremente de sua família), e lembra com admiração implícita a história de seu avô que construiu com as próprias mãos uma casa na qual viveu seus últimos anos. No entanto, o protagonista opta por permanecer trancado em seu apartamento vazio, voluntariamente sem emprego (sustentado pelos pais), sem diversões, com um mínimo de vínculos. Não se trata de um panorama absoluto da indiferença, em que várias pessoas agem de forma desinteressada pela vida (como equivocadamente interpreta Noll em sua empolgação com o livro), e sim da descrição de uma espécie de resistência ao mundo real e suas possíveis e variadas decepções.

A razão por trás dessa escolha nunca é revelada, se houve alguma grande decepção em seu passado ou algum fracasso pessoal muito grande, algum espírito misantrópico desenvolvido depois de reflexões filosóficas. Nas poucas páginas do romance, só se tem acesso ao resultado, ao cinismo e ao tédio de uma pessoa dotada de espírito crítico e analítico (como fica claro com algumas de suas conclusões no decorrer da história) porém sem a capacidade (ou vontade?) de fazer coisa alguma com o seu tempo. Aos outros personagens que aparecem na história só resta falar de suas vidas, já que falar da dele é praticamente impossível.

No segundo romance de Daniel Galera, Mãos de Cavalo, o assunto aparece novamente, só que num plano secundário, relegado a uma personagem coadjuvante. A esposa do protagonista demonstra grande talento em várias das atividades, mas perde a vontade de seguir além do primeiro passo, desistindo antes mesmo de encontrar algum percalço. Depois de sua primeira exposição bem-sucedida de artes plásticas, desiste. Tenta montar uma pequena empresa e abre mão de sua parte. O protagonista, quase oposto de sua cônjuge nesse sentido (um cirurgião plástico bastante afamado), nada pode fazer por ela. O livro cita de forma direta uma frase de J.G. Ballard (do romance Terroristas do Milênio), em que diz: "minha vida é uma dança das cadeiras, só que ao contrário. Cada vez que pára a música botam mais cadeiras". É uma situação parecida com o protagonista de Até o dia em que o cão morreu, embora no livro anterior o caso seja ainda mais radical: ele tem tudo para ser "um sucesso", condições financeiras, educação, apoio da família e nada sai disso.

O romance de Daniel Galera se estrutura em capítulos curtos, praticamente "separáveis", cada um com sua particular coesão e expressividade. Falta à obra, no entanto, um certo poder de síntese, de tal forma que esta fraqueza parece se infiltrar até no protagonista, que acaba por se mudar de volta com os pais e entrar num programa de Mestrado em Literatura perto do final do livro. Há trechos inspirados (como o primeiro e o último capítulos), mas talvez seja a própria individualidade possível desses capítulos, ponto forte do livro (em aparência), o impedimento para que o todo seja maior que a soma de suas partes. Ao mesmo tempo que a brevidade impede que a história se torne entediante (com a falta de eventos no enredo), impede também que algo se desenvolva além da descrição do estilo de vida do protagonista, que se consiga dar o salto do particular para algo além. Não se trata de cumprir a suposta obrigação de toda obra de arte ter contornos sociológicos ou filosóficos, mas de incorporar algo além da mera específicidade. Da mesma forma que o protagonista vê pouco além das paredes de seu próprio apartamento, o texto não consegue sair das páginas que formam o volume.

Breno Kummel.
Bacharel formado na UnB (na área de Literatura).
Encontro correspondente à 6a. feira 16.11.2007.