domingo, 12 de abril de 2009

Sem resgate ou redenção



Há alguns anos Luiz Ruffato vem povoando nossa literatura com gente sem nenhum glamour. No lugar dos intelectuais e artistas que circulam com desenvoltura por tantos romances e contos, ele empurra para dentro costureiras e operárias cansadas; em vez de traficantes sanguinários (e exóticos), traz ladrões baratos que tropeçam nas próprias pernas ou homens bêbados, envergonhados por não conseguirem sustentar os filhos. Enfim, um bando de trabalhadores pobres, de desempregados, de migrantes fracassados que ignoram a placa de “não há vagas” e se instalam ali, onde “não é o seu lugar”. Eles entram e vão carregando consigo suas frustrações, seu cheiro de suor, seus objetos de plástico e suas mesas de fórmica, transportam sua vida mais íntima, impregnada de sonhos.

Voltam agora, com O livro das impossibilidades, quarto volume de Inferno provisório, um conjunto programado de cinco obras que pretende contar um pouco do Brasil das últimas décadas a partir do interior de Minas, da pequena Cataguases, de onde saem, em levas, trabalhadores para os grandes centros urbanos. Se nos volumes anteriores o leitor era convidado a transitar por entre imigrantes italianos, ex-pracinhas, meninos malcriados, freqüentadores de botequim e tocadores de viola de épocas mais distantes – há um percurso temporal no projeto de Ruffato – neste quarto volume ele desembarca, junto das personagens, em plena ditadura militar, no final dos anos 1960. E dali prossegue, acompanhando trajetórias que vão dar nas favelas e nas prisões dos dias de hoje.

O livro se estrutura a partir de três narrativas diferentes, que não se comunicam diretamente, mas se completam em uma espécie de mosaico – recurso literário presente em toda a obra do autor, e metáfora impecável para as vidas que descreve. Vidas que lembram aqueles murais feitos com cacos de azulejos, que cobrem as fachadas pobres das casas dos trabalhadores, aspirando à beleza e à individualidade. Na primeira história, o percurso da família que migra para São Paulo e vai se virando em meio à pobreza, graças à mulher que trabalha dia e noite enquanto o marido passa as horas enroscado no sofá, “inútil como a folhinha dois anos passada”. Na segunda, a carta e as lembranças de um homem ainda apaixonado pela distante colega do colégio. Sua escrita é uma tentativa de retomar certa alegria da infância, ao mesmo tempo em que observa os pedaços que perdeu pelo caminho. Na terceira, duas narrativas correm paralelas – literalmente, uma vez que o texto está disposto em duas colunas –, contando a vida de dois meninos de Cataguases, da época da escola até a maturidade.

O tom de memorialismo que os resumos dos enredos parecem anunciar esbarra logo nas “impossibilidades” do título do livro. Não há resgate nem redenção nessas narrativas. Linha após linha, vemos o cerco se fechar em volta das personagens. Se no início da primeira história – uma bela homenagem às mulheres trabalhadoras – temos a jovem que se muda com o marido para a cidade grande, dá um jeito de trazer a família inteira e criar, orgulhosa, os filhos que virão, ao final ela aparece como a senhora cansada, que empurra sozinha o peso das responsabilidades do dia-a-dia. Da mesma forma que o homem da carta, na segunda história, parece ir se afogando no que conta, sendo arrastado pela certeza de que não pode mudar o que já é passado e tampouco imaginar um outro futuro.

Mas é a última parte do livro que pode causar algum estranhamento no leitor de Ruffato, mais acostumado com suas narrativas fragmentadas, onde o acesso à personagem é sempre parcial, como se apenas cruzássemos com ela, que segue caminhando e vai embora. Aqui, deixamos de ser os pedestres apressados e viramos testemunhas atentas. Zezé e Dinim são os meninos que crescem juntos e se separam na adolescência, se reencontrando mais tarde. Vão vivendo às margens, esbarrando nos muros e despencando nas ladeiras, cometendo pequenos delitos, que tomam proporções cada vez mais drásticas. Seguimos seus passos, freqüentamos suas festas, entendemos seus medos. Terminamos junto de um deles, em 2001, dentro da prisão, arrebentado pela tortura policial.

Zezé e Dinim não são vistos por aí, com arma em punho, exigindo “aquilo que a sociedade lhes deve” ou atirando para ver se “os bacanas grudam na parede”, como em algum conto de Rubem Fonseca, e também não são apresentados como as abstratas e passivas “vítimas do sistema”. São construídos como indivíduos, envoltos em suas circunstâncias e marcados pelos limites que lhes são impostos – assim como a Nelly e o Aílton, das outras duas histórias. Como as obras anteriores de Ruffato, esse livro é extremamente violento. Mas, ao contrário de boa parte da produção literária atual, não somos nós – leitores de classe média – o alvo: não é o nosso corpo, o nosso carro, os nossos filhos que estão sob a mira. São eles os protagonistas, sufocados por impossibilidades que se duplicam a cada gesto, a cada movimento, e que só chegam até nós como experiência humana graças às possibilidades da escrita.

Regina Dalcastagnè.
Professora de Literatura da UnB e pesquisadora do CNPq.


Nota: este texto foi publicado no jornal O Globo em 22.11.2008 (p. 5 da seção Prosa & Verso). O encontro do grupo se realizou a 2a. feira 16.03.09, duas semanas antes da apresentação do volume em Brasília.

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