segunda-feira, 21 de maio de 2007
Miséria multicolorida
Negros negros, negros brancos, negros pobres, negros ricos, negros machos, negros fêmeas, negros gays. É essa a matéria – a paisagem, as tintas e a tela – nas mãos de Marcelino Freire, em seu último livro, Contos negreiros. São 16 contos distribuídos em pouco mais de cem páginas. Como temática central, a variedade "cromática" das misérias humanas e sociais, tão comuns e algumas vezes irrelevantes aos nossos olhares.
O que menos vai importar é a posição étnica de seus narradores, protagonistas, personagens, atores. As relações que eles constroem, a realidade que o autor nos pinta, aliadas à agressividade ritmada da escrita de Freire, é que são negras. Não podemos categorizar ou enfatizar a categorização social referente a raça, cor ou qualquer outro elemento. O fato é que os contos trazem às vistas toda a miséria, o descompasso, nos retiram de um mundo cor-de-rosa e nos fazem esbarrar na realidade: nosso passado colonial é presente e os escravos são agora multicolores.
Ironia, sarcasmo, secura e, em contraponto, pinceladas de uma poesia singela, rimas fáceis, jogos de palavras, trocadilhos, presentes em toda a obra do autor, são traços fortes desses contos. Logo na apresentação, o cearense Xico Sá esboça o que virá pela frente: "o cabra mal começa, acabou-se. De tanto punch, de tão amargo, de tão doce – prosa-rapadura, contraditória?! A gente lê voando, priu, num sopro" (p. 11). A dureza e a agressividade dançam com a doçura sarcástica, piegas, ridícula.
O grande mote dos contos é o desconcerto que pretendem causar ao leitor. "Solar dos príncipes" não tem precedentes. Narra a história de cinco negros que descem o morro para fazer um documentário sobre a classe média. Apossados de instrumentos praticamente inacessíveis a eles – equipamento de produção cinematográfica –, tentam produzir um filme sobre o cotidiano da classe média e são barrados pelo porteiro. Também negro, o porteiro tem um posicionamento "fora do lugar": trabalhando para pessoas abastadas, ele toma partido, nessa cena inusitada, de seus patrões. É como um feitor ou capitão do mato, no período escravocrata. Absorve uma postura de embate – tipicamente a da classe média atual, tão aterrorizada pela violência urbana – e rechaça seus pares.
Em "Coração", a voz que escutamos é a de um travesti prostituído, que masturba homens no metrô. Ainda rara, e bastante discutível, a presença gay na literatura brasileira pauta-se ou pelo estereótipo acrítico ou pelo cuidado insistente na construção, em resposta aos movimentos organizados. Isso não acontece em Contos negreiros. O narrador de "Coração" não levanta bandeiras, não pede respeito, não reclama de sua miséria. Desconcerto: o narrador personagem tem densidade. Não é apenas uma presença gay, mas uma voz ativa, que é vítima, mas que também faz escolhas, pensa a sua realidade, vive, sobrevive, flutua, sofre e morre de prazer.
O deslocamento de ossos, para usar expressão do próprio Freire, o desconforto e a surpresa seguem na construção do livro. Eles são, ao lado da miséria multicolorida, o fio condutor das narrativas – a fonte de conteúdo e forma da obra. "Totonha", o canto XI, desmonta o leitor erudito. Mais uma vez, as nossas restritas concepções e verdades absolutas e universais sofrem abalo. Totonha, a personagem, é uma velha senhora, que, com seu discurso trocado, ao contrário, nos desperta: ela não quer aprender a ler. A sua negra realidade é tão natural, apartada do mundo cultural – restrito aos alguns que o pensam e o consomem –, que não lhe servem a leitura e a escrita. "Capim sabe ler? Escrever? Já viu cachorro letrado, cintenífico? Já viu juízo de valor? Em quê? Não quero aprender, dispenso" (p. 79).
Os preconceitos – rompidos ou expostos – ultrapassam questões de cor e se escancaram em relações colonizatórias dirigidas a mulheres, gays, pobres etc. E é inovador, algo pós-Pós-moderno, o modo como Freire não somente expõe, mas também deixa que o leitor sinta a sua incapacidade de narrar a realidade espedaçada que vê, lê, assiste, vive. Ele subverte a tão recente lógica do texto "politicamente correto" e transgride, pelo menos no espaço do conto, seu papel de autor, quando veste-se ou traveste-se de negro, de negra, de viado, de pobre, de humilde. Sem medo de uma crítica puritano-moralista, deixa fluírem seus preconceitos, suas visões parciais, seus recortes. Ao mesmo tempo, não sugere ao leitor uma relação pacífica com essa realidade; incita, cutuca, inflama... e, para citar Xico Sá, "dá belas chibatadas no gosto médio e preconceituoso, com gozo, gala, esporro, com doce perversidade, sempre no afeto que se encerra numa rapadura" (p. 13).
A obra desconcerta certezas. Põe em xeque o cartesiano e "canônico" fruir literário e o conservadorismo social, quando transcende não só os embates classistas, mas a língua culta – preocupação quase sexual de alguns gramáticos ou saudosistas de um passado glamouroso que não houve – e também a quase instransponível barreira do senso comum, tão vinculado às percepções ocidentais modernas.
E é essa a grande sacada de Freire e alguns de seus contemporâneos: lidar escrachadamente com estereótipos, não de modo a reforçá-los, mas a fazê-los gritar, chamar a todo instante e de modo violento a atenção do leitor. E o autor tem consciência de para quem escreve, na ferida de quem ele quer meter o dedo: é o intelectual leitor de classe média o interlocutor incomodado de Freire. Ou é o principal alvo, pelo menos, de livros tão bem trabalhados visualmente – atrativos para os olhos e embrulhados para o estômago.
Liana Aragão.
Mestre em Literatura pela Universidade de Brasília.
Encontro da terça-feira 29.11.2005.
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Marcelino Freire - Contos negreiros
O paraíso fragmentado
Futebol, escatologia, doença, sujeira, relações humanas deficientes e baseadas na ignorância. Isso dificilmente se concretizaria em um produto-livro bem acabado e publicado por uma das maiores editoras brasileiras. É o que nosso imaginário permite antever. E quando nos damos conta de que estamos diante de quase quinhentas páginas de um romance cujo protagonista é negro, aí temos a certeza de que esse livro é uma ficção. Não a história que ele traz em si, mas a própria existência dele como produto editorial.
O paraíso é bem bacana, de André Sant'Anna, existe. E foi publicado em 2006 pela Companhia das Letras. E tem quatrocentos e tantas páginas e um protagonista negro. O cenário oscila entre a lógica que rege o universo do futebol no Brasil e no mundo e a realidade crua, pobre e sem perspectiva daqueles desprovidos de cidadania. Se isso significa uma mudança sócio-estrutural nos interesses mercadológicos da indústria de livros, é difícil afirmar por agora, mas o fato é que esse objeto já representa uma dissonância com relação aos produtos que compartilham as prateleiras das asseadas livrarias.
Mané tem dezessete anos e é um verdadeiro talento do futebol. Depois de passar por pequenos times do interior de São Paulo e chegar a categorias adolescentes do Santos Futebol Clube, é descoberto por agentes responsáveis pela indicação de nomes a grandes times internacionais. Vai para a Alemanha e passa a jogar no Herta Berlim BSC. Um grande jogador: admirado por todos os que o assistem em campo.
Isso poderia ser uma história de sucesso, finalmente. Mas não. O resumo pode ser esse mesmo, mas entre um passo e outro dessa trajetória nos deparamos com um jovem doente. Sem pai e com a mãe prostituída e negligente, Mané nasceu em Ubatuba-SP, e sempre viveu em um bairro pobre. Não conseguiu acompanhar a escola – mesmo sendo requisito para participar das escolinhas dos times pelos quais passou – e era alvo de chacota dos amigos. Construiu uma noção de sexo baseada no prazer efêmero e na escatologia, a partir de piadas dos amigos, de explicações descontextualizadas e de revistas e filmes do gênero.
Poderia ser uma batida história de sucesso, apesar dos fracassos constantes da infância. Mas não. Apesar da tentação de ir por esse caminho, o mote do romance de Sant'Anna é outro. O auge do enredo é explicitado logo no início: Mané explode o próprio corpo num atentado que julga ser uma prova de devoção a Alá. Um fracasso como ser social e também como terrorista muçulmano.
Se esses pequenos resumos parecem inconectáveis é porque estamos presos a um modelo muito linear de estrutura narrativa. Ainda mais diante do contexto: o livro é uma aposta de uma grande editora. Mas a doença do personagem e do universo que o cerca é mesmo impossível de ser contada por uma narrativa sã: daí que o(s) relato(s) se desenvolve(m) em fragmentos não continuados, depoimentos, visões. E o leitor torce para que tudo se arranje e se esclareça no fim.
Poderia, afinal, ser uma história de sucesso, apesar dos fracassos constantes e de uma adolescência confusa e atribulada, além do alheamento religioso. Poderia ser uma visão muito condizente com discursos de movimentos sociais, a partir de relatos desconexos e fragmentados, tal como a realidade se apresenta. Mas não. A miséria de Mané e dos personagens "bem sucedidos" que com ele interagem – se é que há interação – é central e carregada até as últimas linhas e conseqüências. Inclusive com a narrativa supostamente post mortem do protagonista.
A predisposição (intelectual?) para concluir e compreender algo pode nos levar à seguinte explicação: a aposta da Companhia das Letras se justifica pela complexidade do livro e da personagem. (Ou será que o fato de o autor ser filho de Sérgio Sant'Anna – consagrado escritor da geração da década de 1970 até agora, vencedor de grandes prêmios literários e com grande parte de seus livros reeditados pela mesma editora – é que explica a situação?) Esse e outros poderiam ser mais um ponto a compor o universo do livro. Decifrado – se possível – somente com a leitura, por ser portador de um discurso atual e real sobre o Brasil que vivemos. Poderia ser isso. Mas não.
Liana Aragão.
Mestre em Literatura pela Universidade de Brasília.
Encontro da quinta-feira 13.07.2006.
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André Sant'Anna - O paraíso é bem bacana
segunda-feira, 7 de maio de 2007
Pelo fundo da agulha, de Antônio Torres
Último livro da trilogia do migrante iniciada em 1976, Pelo fundo da agulha traz para dentro do si mesmo, na imobilidade do personagem deitado na cama num estágio de consciência fronteiriço entre a vigília e o sono, o balanço da trajetória de Totonhim desde sua saída do Junco, interior da Bahia, aos vinte anos de idade, até a construção de sua vida em São Paulo – o ingresso no Banco do Brasil, o casamento com a filha do general, sua vida de casado, de separado e, finalmente, de aposentado. A associação livre da memória une elementos irremediavelmente separados pela vida.
A imagem de sua mãe passando uma linha pelo fundo da agulha define a narrativa que é tecida com fio que vem desde a estréia de Torres com o primeiro livro da trilogia, Essa Terra (1976). Esse livro bombástico esgotou edições e nele conhecemos o ponto de vista da gente pobre que vem e vai entre o interior do nordeste e São Paulo. O tema já era clássico na nossa literatura, mas o migrante na primeira pessoa não.
Empobrecida pela perda de sua propriedade para o banco e dividida pela diferença de visão de mundo do pai – quer permanecer na roça – e da mãe – quer ir para Feira de Santana onde há chance de progressão escolar para os filhos – a família busca na volta de Nelo sua última esperança. Nelo havia ido para São Paulo há vinte anos e não consegue suportar o peso das cobranças, especialmente das expectativas de sua mãe. Doente e fracassado, põe fim em sua vida. Entretanto, o suicídio de Nelo não mata o sonho da cidade de tentar a vida no “sul maravilha” e, no final, Totonhin entra no ônibus, mesmo contra a vontade do pai.
Com destino muito diferente do irmão, Totonhim prospera e se fixa em São Paulo. Volta para Junco apenas uma vez para uma rápida visita por ocasião dos oitenta anos de seu pai, motivo do segundo romance da trilogia, O cachorro e o lobo (1997). Nele acontece o confortante reencontro de Totonhim com sua terra, os sons, os sabores e as pessoas da sua infância e adolescência. Mas a realidade de sua vida é bem outra, e quando o pai pede para que ele fique ali, a impossibilidade de conciliação entre as duas vidas rompe e Junco fica para sempre nos parêntesis de um fim-de-semana.
Romances belos e sensíveis percorrem os dramas vividos na migração puxando fios que vêm desde Vidas secas (1938) e que passam por Morte e vida severina (1956) entretecendo uma outra trama: o personagem integrado. O jovem promissor que cumpre e ultrapassa todas as expectativas. Um menino especial que na infância já era conhecido pelo gosto da escrita e que desenvolve o gosto pela literatura. Assim é que não intriga o leitor o vasto saber literário do funcionário. Homem marcado por metáforas e lembranças.
No entanto, é de limites que trata o romance. A identidade esgarçada até o difícil reconhecimento no intervalo entre ser nordestino, sem mais sê-lo, e paulista que é sem ser. Pelo fundo da agulha revela Totonhim pelejando com suas memórias, relembrando as pessoas, os motivos, e os acontecimentos de sua vida para vislumbrar um sentido e um motivo para se levantar no dia seguinte.
Adriana Araújo.
Doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Encontro da sexta-feira 16.03.2007
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Antônio Torres - Pelo fundo da agulha
quinta-feira, 3 de maio de 2007
Tramas mínimas e destreza máxima
A recorrente angústia do artista em grafar a experiência, nomeando o mundo para reter a verdade do ser e das coisas, perpassa obras exemplares, como a de Jorge Luis Borges, em "A Biblioteca de Babel", na qual o universo é cifrado e condensado em um único livro. Pretensão similar parece mover o protagonista de O cão no sótão – uma das novelas que integra A História dos Ossos (Ed. 34, 2005), do escritor e gravurista santista Alberto Martins. O personagem gravita em torno da obsessão de "escrever uma única página verdadeiramente viva" para alcançar a "mais absoluta, imprevisível e irremediável liberdade". Sustentados por tramas mínimas e diminuta ação dramática, a destreza do autor está em manter a tração narrativa com a maestria típica dos grandes escritores. Além de compor ficções instigantes, envoltas em rarefeitas atmosferas insólitas, seu mérito também reside no tear textual, que beira a poesia em seus traços de concisão e depuração e forte carga imagética a ponto de o leitor não apenas visualizar nitidamente o que é narrado como expandir os demais sentidos a partir das descrições de cheiros, gostos, tatos, lembranças. Em O cão no sótão somos apresentados a um rapaz tomado por uma "atração desmedida pela escrita", segundo o espantado relato de seu irmão diante de seu isolamento e desatino. A voz narrativa é deslocada para essa figura que expõe- em sôfregos solilóquios – digressões sobre o ato da escrita e a falibilidade da palavra como retábulo da memória da humanidade. Trancafiado em um sótão e tendo um cão como interlocutor, conta e condena a criação e a missão das palavras na história, desde quando eram guardadas nas pedras, passando pelos pergaminhos, moedas, leis: "Sabes de que é feita uma língua, ó cão? Língua são os assaltos, os ataques, as pilhagens e os saques que durante milhares de anos um povo impinge a outro". Acaba por concluir que a verdade está confiada aos ossos, "os destroços originais da criação". Um riscar de fósforos impõe o fim a tudo: palavras e ossos convertidos em carvão, cinzas e pó. Sua outra novela – que titulou o livro – está conformada em um inusitado traslado dos ossos do pai do antigo cemitério, no centro da cidade de Santos, ao crematório. Os túmulos estavam sendo removidos para ceder espaço a containers no porto. Pelas mãos do filho, o saco de ossos acompanha seu itinerário por ruas estreitas e ruidosas, modelando a degradação do Mercado e da Alfândega, refazendo os passos do pai, revolvendo lembranças. Em uma bela passagem, reporta-se ao pai compondo sua figura a partir de cores e matizes: "o pai sempre fora severo e cinza – mas de uma variedade tão grande de cinzas que estes acabavam matizando tanta severidade". A gradação cromática, a luz recortando a paisagem acompanham elementos visuais que acionam sensações de fastio e repulsa aos cheiros de café e maresia, borracha e óleo, ácido e esgoto. E justamente para livrar o pai da modorra e masmorra, em um bote, lança-o ao mar - "um gole no escuro". Além de restaurar sua memória, o filho determina seu destino, devolvendo-o à matéria primeira, nuclear. "E os ossos baixaram – no mesmo lodo de onde surgiram num dia de 1914".
Luciana Barreto.
Jornalista e Mestranda em Literatura pela Univ. de Brasília.
Encontro da terça-feira 21.11.2006.
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Alberto Martins - História dos ossos
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