quinta-feira, 3 de maio de 2007

Tramas mínimas e destreza máxima

A história dos ossos

A recorrente angústia do artista em grafar a experiência, nomeando o mundo para reter a verdade do ser e das coisas, perpassa obras exemplares, como a de Jorge Luis Borges, em "A Biblioteca de Babel", na qual o universo é cifrado e condensado em um único livro. Pretensão similar parece mover o protagonista de O cão no sótão – uma das novelas que integra A História dos Ossos (Ed. 34, 2005), do escritor e gravurista santista Alberto Martins. O personagem gravita em torno da obsessão de "escrever uma única página verdadeiramente viva" para alcançar a "mais absoluta, imprevisível e irremediável liberdade". Sustentados por tramas mínimas e diminuta ação dramática, a destreza do autor está em manter a tração narrativa com a maestria típica dos grandes escritores. Além de compor ficções instigantes, envoltas em rarefeitas atmosferas insólitas, seu mérito também reside no tear textual, que beira a poesia em seus traços de concisão e depuração e forte carga imagética a ponto de o leitor não apenas visualizar nitidamente o que é narrado como expandir os demais sentidos a partir das descrições de cheiros, gostos, tatos, lembranças. Em O cão no sótão somos apresentados a um rapaz tomado por uma "atração desmedida pela escrita", segundo o espantado relato de seu irmão diante de seu isolamento e desatino. A voz narrativa é deslocada para essa figura que expõe- em sôfregos solilóquios – digressões sobre o ato da escrita e a falibilidade da palavra como retábulo da memória da humanidade. Trancafiado em um sótão e tendo um cão como interlocutor, conta e condena a criação e a missão das palavras na história, desde quando eram guardadas nas pedras, passando pelos pergaminhos, moedas, leis: "Sabes de que é feita uma língua, ó cão? Língua são os assaltos, os ataques, as pilhagens e os saques que durante milhares de anos um povo impinge a outro". Acaba por concluir que a verdade está confiada aos ossos, "os destroços originais da criação". Um riscar de fósforos impõe o fim a tudo: palavras e ossos convertidos em carvão, cinzas e pó. Sua outra novela – que titulou o livro – está conformada em um inusitado traslado dos ossos do pai do antigo cemitério, no centro da cidade de Santos, ao crematório. Os túmulos estavam sendo removidos para ceder espaço a containers no porto. Pelas mãos do filho, o saco de ossos acompanha seu itinerário por ruas estreitas e ruidosas, modelando a degradação do Mercado e da Alfândega, refazendo os passos do pai, revolvendo lembranças. Em uma bela passagem, reporta-se ao pai compondo sua figura a partir de cores e matizes: "o pai sempre fora severo e cinza – mas de uma variedade tão grande de cinzas que estes acabavam matizando tanta severidade". A gradação cromática, a luz recortando a paisagem acompanham elementos visuais que acionam sensações de fastio e repulsa aos cheiros de café e maresia, borracha e óleo, ácido e esgoto. E justamente para livrar o pai da modorra e masmorra, em um bote, lança-o ao mar - "um gole no escuro". Além de restaurar sua memória, o filho determina seu destino, devolvendo-o à matéria primeira, nuclear. "E os ossos baixaram – no mesmo lodo de onde surgiram num dia de 1914".

Luciana Barreto.
Jornalista e Mestranda em Literatura pela Univ. de Brasília.
Encontro da terça-feira 21.11.2006.

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