segunda-feira, 21 de maio de 2007

O paraíso fragmentado

O paraíso é bem bacana, André Sant'Anna

Futebol, escatologia, doença, sujeira, relações humanas deficientes e baseadas na ignorância. Isso dificilmente se concretizaria em um produto-livro bem acabado e publicado por uma das maiores editoras brasileiras. É o que nosso imaginário permite antever. E quando nos damos conta de que estamos diante de quase quinhentas páginas de um romance cujo protagonista é negro, aí temos a certeza de que esse livro é uma ficção. Não a história que ele traz em si, mas a própria existência dele como produto editorial.

O paraíso é bem bacana, de André Sant'Anna, existe. E foi publicado em 2006 pela Companhia das Letras. E tem quatrocentos e tantas páginas e um protagonista negro. O cenário oscila entre a lógica que rege o universo do futebol no Brasil e no mundo e a realidade crua, pobre e sem perspectiva daqueles desprovidos de cidadania. Se isso significa uma mudança sócio-estrutural nos interesses mercadológicos da indústria de livros, é difícil afirmar por agora, mas o fato é que esse objeto já representa uma dissonância com relação aos produtos que compartilham as prateleiras das asseadas livrarias.

Mané tem dezessete anos e é um verdadeiro talento do futebol. Depois de passar por pequenos times do interior de São Paulo e chegar a categorias adolescentes do Santos Futebol Clube, é descoberto por agentes responsáveis pela indicação de nomes a grandes times internacionais. Vai para a Alemanha e passa a jogar no Herta Berlim BSC. Um grande jogador: admirado por todos os que o assistem em campo.

Isso poderia ser uma história de sucesso, finalmente. Mas não. O resumo pode ser esse mesmo, mas entre um passo e outro dessa trajetória nos deparamos com um jovem doente. Sem pai e com a mãe prostituída e negligente, Mané nasceu em Ubatuba-SP, e sempre viveu em um bairro pobre. Não conseguiu acompanhar a escola – mesmo sendo requisito para participar das escolinhas dos times pelos quais passou – e era alvo de chacota dos amigos. Construiu uma noção de sexo baseada no prazer efêmero e na escatologia, a partir de piadas dos amigos, de explicações descontextualizadas e de revistas e filmes do gênero.

Poderia ser uma batida história de sucesso, apesar dos fracassos constantes da infância. Mas não. Apesar da tentação de ir por esse caminho, o mote do romance de Sant'Anna é outro. O auge do enredo é explicitado logo no início: Mané explode o próprio corpo num atentado que julga ser uma prova de devoção a Alá. Um fracasso como ser social e também como terrorista muçulmano.

Se esses pequenos resumos parecem inconectáveis é porque estamos presos a um modelo muito linear de estrutura narrativa. Ainda mais diante do contexto: o livro é uma aposta de uma grande editora. Mas a doença do personagem e do universo que o cerca é mesmo impossível de ser contada por uma narrativa sã: daí que o(s) relato(s) se desenvolve(m) em fragmentos não continuados, depoimentos, visões. E o leitor torce para que tudo se arranje e se esclareça no fim.

Poderia, afinal, ser uma história de sucesso, apesar dos fracassos constantes e de uma adolescência confusa e atribulada, além do alheamento religioso. Poderia ser uma visão muito condizente com discursos de movimentos sociais, a partir de relatos desconexos e fragmentados, tal como a realidade se apresenta. Mas não. A miséria de Mané e dos personagens "bem sucedidos" que com ele interagem – se é que há interação – é central e carregada até as últimas linhas e conseqüências. Inclusive com a narrativa supostamente post mortem do protagonista.

A predisposição (intelectual?) para concluir e compreender algo pode nos levar à seguinte explicação: a aposta da Companhia das Letras se justifica pela complexidade do livro e da personagem. (Ou será que o fato de o autor ser filho de Sérgio Sant'Anna – consagrado escritor da geração da década de 1970 até agora, vencedor de grandes prêmios literários e com grande parte de seus livros reeditados pela mesma editora – é que explica a situação?) Esse e outros poderiam ser mais um ponto a compor o universo do livro. Decifrado – se possível – somente com a leitura, por ser portador de um discurso atual e real sobre o Brasil que vivemos. Poderia ser isso. Mas não.

Liana Aragão.
Mestre em Literatura pela Universidade de Brasília.
Encontro da quinta-feira 13.07.2006.

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